O mundo que atualmente conhecemos funciona mais ou menos assim:
Quem manda:
- Os Estados Unidos ainda é a potência mais influente, com liderança militar, econômica e cultural.
- A China emerge como grande rival dos Estados Unidos por ser uma grande potência em manufatura e comércio.
- A Rússia, apesar de não ter muito peso econômico, tem muito grande poder no cenário mundial devido sua força militar e controle de recursos energéticos.
- A União Europeia também tem grande representatividade especialmente quando o assunto é economia e diplomacia.
Quem obedece:
- Países menores ou menos poderosos, como nações em desenvolvimento na África, Ásia e América Latina, que se alinham às grandes potências por dependência econômica ou militar.
Quais são regras:
- A ONU media conflitos e promove cooperação.
- O FMI e o Banco Mundial regulam as finanças e o desenvolvimento econômico.
- A OMC define as normas para o comércio global.
Esse cenário reflete em um sistema onde a cooperação e a competição coexistem.
Mas desde quando o mundo é assim? Como as grandes potências mundiais e o controle de poder se alinharam desta maneira?
Antes da Primeira Guerra Mundial, estas questões de poder e controle funcionavam de forma bem diferente. A ordem mundial dançava ao som de outra música.
Entender esta parte da história é importantíssimo para a compreensão de como chegamos até aqui e termos uma noção do quão impactante é a implantação de uma nova ordem mundial, assim como aparentemente planeja Donald Trump em seu atual mandato.
Mas antes de elaborarmos esta conversa, vamos entender do que se trata o conceito de ordem mundial.
O que é uma ordem mundial?
“Ordem mundial” é um termo que descreve a estrutura de poder, as regras e os equilíbrios políticos, econômicos e militares que organizam as relações entre os países em um determinado período histórico.
É como se fosse o jogo global que define:
- Quem são os países que mandam;
- Quem são os países que obedecem; e
- Quais são as regras.
A introdução desta postagem mostrou como é a atual ordem mundial. Foram especialmente três eventos que determinaram esta forma do mundo:
- A Primeira Guerra Mundial;
- A Segunda Guerra Mundial;
- A dissolução da União Soviética em 1991.
Mas antes da primeira grande guerra, lá em 1914, o mundo era regido pela multipolaridade, pelo colonialismo e pelo equilíbrio de poder entre as principais potências da época. Vamos fazer uma viagem no tempo e visitar o mundo no final do século XIX e início do século XX, antes das duas grandes guerras mundiais eclodirem.
Multipolaridade – a divisão de poder antes da Primeira Guerra Mundial
Em termos simples, neste sistema o poder estava dividido entre várias grandes potências, sendo que nenhuma delas era dominante o suficiente para impor sua vontade sozinha.
O mundo daquela época era dominado por múltiplas potências competindo por influência, como o Reino Unido, a França, a Alemanha, a Rússia e a Áustria-Hungria.
Mais tarde, os Estados Unidos entraram neste grupo e, no fim do século XIX, o Japão também.
A maioria das demais partes do mundo eram colonizadas por estas grandes potências. Países europeus detinham colônias da África, Ásia e Oceania e dominavam a política, a economia e o exército de tais regiões.
Este regime era justificado por ideias de superioridade racial ou missão civilizatória, isto é, a crença que as potências colonizadoras tinham o dever moral de civilizar os povos considerados atrasados ou selvagens, segundo os padrões europeus.
Alguns exemplos do imperialismo são o Reino Unido que controlava a Índia, a França que dominava a Argélia e a Indochina, e a Bélgica que explorava brutalmente o Congo.
Mas qual era o papel de cada uma destas grandes potências no cenário mundial antes da Primeira Guerra Mundial? Essa parte é interessantíssima, vejamos.
Reino Unido

Na época composto pela Inglaterra, Escócia, País de Gales e toda a Irlanda, o Reino Unido era considerado a principal potência global, “o império onde o sol nunca se põe”.
Tinha a marinha mais poderosa do mundo, o que era fundamental para proteger o comércio e controlar as colônias africanas e asiáticas que estavam sob seu domínio.
Para exemplificar o poder naval do Reino Unido, a Royal Navy, ou Marinha Real Britânica, tinha 22 dreadnoughts, que era o que havia de mais revolucionário em termos de navios de guerra, além de quase outros 180 navios de guerra tradicionais. A título de comparação, a Alemanha tinha 17 dreadnoughts; os EUA, 10; e a França, 04.
Londres era o coração das transações internacionais, o centro financeiro e comercial do mundo. A libra esterlina era a moeda global, com cerca de 60% do comércio mundial faturado nesta moeda. Países como EUA, Rússia e Japão contraíam dívidas em Londres para financiar infraestrutura, como ferrovias.
França
Com vastos territórios na África e no Sudeste Asiático, a França era a segunda maior potência colonial.

Era muito influente em termos cultural e intelectual, ditando tendências na literatura, filosofia e moda. Também tinha força no desenvolvimento científico, artístico e industrial.
Obras como Os Miseráveis (1862) e O Corcunda de Notre-Dame (1831) influenciaram não apenas a literatura, mas também debates sociais sobre pobreza e justiça. Com A Comédia Humana, uma série de mais de 90 romances e histórias, retratou a sociedade francesa e inspirou escritores do mundo todo.
No século XIX, Paris consolidou-se como referência mundial de elegância e estilo, com grandes costureiros como Charles Frederick Worth, considerado o pai da alta-costura. O jeito de se vestir da alta sociedade parisiense era imitado por elites europeias e até americanas.
Na Medicina, Louis Pasteur revolucionou a área científica com a pasteurização e estudos sobre microrganismos, salvando milhões de vidas até hoje.
E na Ciência, não podemos deixar de mencionar Marie Curie, Prêmio Nobel pela pesquisa sobre os elementos rádio e polônio.
Resumindo, a França era vista como “a capital cultural do mundo” no século XIX, influenciando estilos de vida, pensamentos, arte e ciência em praticamente todos os cantos do globo.
Áustria-Hungria

Esta potência formada pela união da Áustria e da Hungria firmada desde 1867 ocupava uma posição única na multipolaridade europeia. Apesar de muitas vezes ser vista como menos dinâmica do que Reino Unido, França, Alemanha ou Rússia, o Império Habsburgo foi uma potência-chave por diversas razões.
A começar, podemos citar uma característica bem singular deste império: sua rara diversidade étnica e cultural. No mesmo território habitavam alemães, húngaros, tchecos, eslovacos, croatas, sérvios, poloneses, ucranianos, romenos, italianos e outros povos.
Isso trazia uma vasta riqueza cultural. Mas também grande instabilidade política.
A convivência entre diferentes povos alimentava rivalidades, desconfianças e movimentos separatistas uma vez que eles tinham identidades, línguas, religiões e aspirações nacionais bastante distintas.
Por exemplo, no século XIX, com o nacionalismo se espalhando pela Europa, cada grupo dentro do império austro-húngaro queria afirmar sua própria identidade nacional, buscar autonomia, autogoverno e proteção de sua língua e cultura.
Os tchecos e eslovacos queriam maior autonomia dentro do império. Os Sérvios e croatas se inspiravam nas ideias de liberdade nacional praticadas pelos vizinhos da Sérvia, que alcançaram a independência. Quanto aos poloneses, romenos e italianos, estes buscavam união com seus povos de fora do império.
Sem falar da desigualdade e da discriminação. O império era governado de Viena (Áustria) e Budapeste (Hungria), com o centro do poder longe das regiões periféricas, que sentiam suas demandas negligenciadas.
O sistema favorecia a elite austríaca de língua alemã e a elite húngara, enquanto as demais etnias tinham menos poder, menos direitos políticos e pouca representatividade. As línguas minoritárias eram, muitas vezes, excluídas das escolas e dos serviços públicos.
Os diferentes grupos concorriam entre si por territórios, reconhecimento e direitos. Isso gerava tensões internas, protestos e até pequenos confrontos, que acabavam por enfraquecer o império de dentro para fora.
Falando do papel diplomático e político da Áustria-Hungria, o império era uma das cinco grandes potências do Concerto Europeu, tendo papel fundamental nas decisões do continente após as Guerras Napoleônicas.
Graças à unificação de todos os povos que a formavam, o império tinha um dos maiores exércitos da Europa. Mas enfrentava desafios de comando devido à multiplicidade de línguas e culturas nas fileiras militares.
Tinha polos industriais notáveis, como Viena, Budapeste, Praga e Trieste, mas com ritmo mais lento e desigual quando comparado à Alemanha ou ao Reino Unido.
Viena se destacava por seus importantes centros universitários importantes, principalmente nas áreas de medicina, psicologia, artes e ciências naturais. Foi o berço de Sigmund Freud, pai da psicanálise; e de
Ludwig Boltzmann, destaque na física estatística.
E mais ainda notável em Viena era o aspecto cultural da cidade. Foi onde nasceu a música clássica, com Strauss e Mahler e onde se desenvolveu a genial arte de Gustav Klimt.
Concluímos que a Áustria-Hungria era um império complexo, vibrante em cultura e ciência. mas vulnerável por suas divisões internas e tensões nacionalistas.
Alemanha
A Alemanha era a principal potência industrial da Europa continental. Liderou setores como aço, carvão, químicos (com empresas como Bayer e Siemens), engenharia e eletricidade.

Além disso, universidades e centros técnicos alemães atraíam estudantes e cientistas do mundo inteiro. Foram as universidades alemãs que criaram o sistema moderno de pós-graduação, formando uma elite científica que influenciou o mundo inteiro.
O Império Alemão detinha talvez do mais avançado e disciplinado exército da Europa, um modelo de organização copiado globalmente. O país apostava no desenvolvimento de uma marinha de guerra moderna, desafiando a hegemonia britânica.
As cidades alemãs cresciam rapidamente, com infraestruturas como ferrovias, portos e fábricas exemplares. A Alemanha, inclusive, foi o berço da invenção do automóvel, com empresas como Mercedes-Benz e BMW.
Embora não fosse considerada “capital cultural” como Paris; Berlim, Munique e outras cidades eram centros de vida intelectual ativa, especialmente em música (Beethoven), filosofia (Nietzsche, Marx) e ciências sociais.
Podemos então dizer que a Alemanha era a locomotiva industrial e tecnológica da Europa, referência militar e de organização estatal, uma potência científica e educacional e o centro de inovação e pensamento.
Rússia

Embora desempenhasse um papel diferente dos países europeus acima mencionados, a Rússia exerceu influência significativa na multipolaridade europeia.
Um grande destaque sempre foi sua extensão territorial, sendo o maior país do mundo neste quesito, abrangendo Europa Oriental, toda a Sibéria até o Pacífico, Ásia Central e o Cáucaso. A Rússia era uma verdadeira “colcha de retalhos” de povos, línguas e religiões.
Detentora do maior exército em termos numéricos, a estrutura militar da Rússia era importante tanto para a defesa quanto para a expansão e o controle sobre territórios vizinhos.
A Rússia competia com a Áustria-Hungria e o Império Otomano na região dos Bálcãs, assumindo o papel de protetora dos povos eslavos e cristãos ortodoxos.
Diferente da Alemanha e outras grandes potências europeias, o processo de industrialização da Rússia foi lento. Ganhou maior ímpeto no final do século XIX, com destaque nos setores de siderurgia e ferrovia.
Acerca da cultura, a Rússia fez importantes contribuições artísticas com compositores como Tchaikovsky. E que dizer do balé russo, que ganhou referência mundial?
Falando de sociedade e política, a Rússia foi laboratório de ideias políticas, do anarquismo ao socialismo revolucionário. Lênin foi uma figura marcante nesta seara no início do século XX.
Podemos concluir que a Rússia foi um gigante continental, mesclando influência militar e diplomática, expansão territorial e riqueza cultural, enquanto enfrentava grandes desafios internos de modernização.
Estados Unidos

(Welcome Collection)
Apesar de não integrarem o “clube europeu” das grandes potências tradicionais, os Estados Unidos tiveram um papel bastante peculiar na multipolaridade mundial vigente no mundo pré guerras mundias.
Durante a maior parte do século XIX, os EUA estavam focados na expansão territorial interna e na consolidação nacional pós-Guerra Civil (1861-1865).
Inicialmente, adotaram a Doutrina Monroe (1823), uma política externa que buscava afastar potências europeias das Américas.
Entre 1860 e 1914, os Estados Unidos tiveram uma explosão industrial, tornando-se a maior economia industrial do mundo. Alguns segmentos de grande destaque estavam na produção de aço, extração de petróleo, construção de ferrovias e novos métodos produtivos, como o sistema implantado por Ford.
Inovações científicas e tecnológicas, como o telefone (Graham Bell) e a lâmpada elétrica (Edison) tornaram-se símbolos do potencial inovador americano.
Chamados de “fábrica do mundo” no início do século XX, tornaram-se um dos principais destinos de imigrantes, aumentando a força de trabalho e dinamismo econômico.
Foi neste contexto histórico que os Estados Unidos incorporaram vastos territórios de localidades que antes pertenciam ao México e à Espanha.
Diplomaticamente falando, apesar de evitarem alianças militares com potências europeias, participavam de negociações de paz e tinham crescente influência na definição de normas e “direitos” internacionais, defendendo mercados abertos e investimentos externos.
Sim, os Estados Unidos eram principalmente uma potência regional em ascensão. Seu crescimento acelerado em população, riqueza, tecnologia e ambição imperial desenhou o cenário para sua atuação decisiva no século XX.
Japão

O Japão foi o caso mais marcante de ascensão de uma potência não europeia na multipolaridade do final do século XIX e início do século XX. A transformação japonesa surpreendeu o mundo e alterou o equilíbrio de poder no leste asiático.
Até meados do século XIX, o Japão era um país isolado, com contatos limitados ao exterior.
Entre 1868 e 1912, no entanto, passou por uma modernização radical. Aboliu o xogunato feudal e restaurou o poder imperial, adotando métodos, indústrias e tecnologias ocidentais.
E não parou por aí. O Japão também investiu na construção de uma marinha e exército modernos, seguindo os moldes dos impérios britânico e alemão.
Em 1895, venceu a Guerra Sino-Japonesa, quando derrotou a China, conquistou Formosa (o atual Taiwan) e ganhou influência na Coreia. E a Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) ficou na história como a primeira vez que uma potência asiática venceu uma europeia.
O Japão reverberou no mundo todo como prova da nova força das potências não ocidentais.
Após derrotar Rússia e China, o Japão passou a ser reconhecido como “Grande Potência”. Participou de conferências internacionais e em 1902, celebrou a Aliança Anglo-Japonesa com o Reino Unido, que foi a primeira aliança tecnológica-militar entre uma potência europeia e um país asiático.
A ascensão do Japão também refletiu em aspectos culturais e científicos da sociedade japonesa, que passou a adotar vestimentas, estilos arquitetônicos e tecnologias ocidentais sem deixar de preservar valores tradicionais.
Entendemos, portanto, que no período que antecedeu a Primeira Guerra Mundial, o Japão transformou-se de um Estado isolado em uma potência industrial e militar moderna, surpreendendo o mundo com vitórias sobre grandes impérios, estabelecendo presença imperialista na Ásia e se inserindo no rol de potências que se destacavam no cenário global.
Agora que sabemos mais sobre as forças e fraquezas de cada potência que marcou a multipolaridade da ordem mundial do século XIX, podemos falar de mais um aspecto notável deste período histórico – o equilíbrio de poder entre as grandes potências.
Equilíbrio de poder entre potências
Esta estratégia diplomática evitava que uma única potência se tornasse hegemônica, ou seja, que detivesse o poder soberano. Para tanto, eram estipulados alianças e acordos.
Alguns exemplos que ilustram este mecanismo são a Tríplice Entente, que uniu França, Reino Unido e Rússia; o Congresso de Viena em 1815, que reorganizou a Europa pós-Napoleão; e a Era Bismarck na Alemanha, que fazia o uso de alianças para isolar a França e evitar uma guerra em duas frentes.
O mundo era como uma dança das cadeiras entre grandes potências rivais que desejavam poder e supremacia. Nenhuma delas dominava sozinha (multipolaridade), mas todos queriam mais colônias (imperialismo) e influência. Para não perderem, faziam alianças e equilibravam o poder.
Até que, em 1914, um assassinato nos Bálcãs virou o estopim da 1ª Guerra Mundial, destruindo completamente esta ordem mundial. Era uma época de competição sem regras.
Este será o tema da nossa próxima conversa.